Apesar de ter nascido em Coimbra – porque em Tomar não havia maternidade – Inês Pedrosa assume-se como tomarense. “É na cidade templária fundada por Gualdim Pais que tenho as minhas raízes, o meu chão - e, agora, um vasto séquito de anjos protetores”. “Tomar é o meu colo”.
A escritora foi uma das galardoadas nas cerimónias do feriado municipal em Tomar, a 1 de março.
Transcrevemos aqui o texto de Inês Pedrosa:
Pertença
Sou de uma terra de extremos: muito frio, muito calor e uma beleza capaz de regenerar o mais celerado, nem que seja por uma hora.
“A beleza é aquilo que mais abate o nosso fingimento”, escreveu Agustina Bessa-Luís nas páginas de Vale Abraão, um romance onde se aprende a viver, e a frase ocorre-me enquanto passeio na margem do Nabão, em Tomar, a minha terra.
Gosto de pensar que a transparência, que para alguns é a minha maior qualidade e para outros o meu pior defeito (para mim, depende, mas dobrados os 50 deixei sequer de me ralar com isso), vem dessa rendição à beleza do sítio onde comecei a ser eu.
Nasci em Coimbra, porque não havia maternidade em Tomar - mas dizer que sou de Coimbra seria mentir: a verdade é que só a conheci e amei a partir do Para Sempre de Vergílio Ferreira.
Devíamos poder corrigir a falsidade dos bilhetes de identidade; somos da terra onde começámos a ser gente, somos um composto da paisagem e das pessoas com as quais descobrimos as palavras, os ritmos e as temperaturas das coisas, os cheiros, os sabores, os gestos.
É na cidade templária fundada por Gualdim Pais que tenho as minhas raízes, o meu chão - e, agora, um vasto séquito de anjos protetores.
Entro no café Paraíso e lá está o meu pai, com a bica na mão, preenchendo o Totobola da eterna esperança sportinguista e preparando-se para mais um jogo de bilhar, no salão das traseiras.
O seu sorriso dança nos espelhos italianos que cobrem as paredes e que já refletiram também o rosto de Umberto Eco - o filósofo e escritor que definiu Tomar, comovidamente, como “o umbigo do mundo”.
Tem 115 anos, este café; encontro-o cheio de jovens, envolvido na música, tão nova e já velha, de Peter Frampton, numa noite límpida de inverno, mas o meu pai avança entre as colunas marmóreas para se sentar ao meu lado, olhando através das vidraças a Corredora vazia e sussurrando-me as palavras ternas que nunca soube dizer quando era vivo.
A conversa é interrompida pela voz real da minha mãe, contando histórias antigas - namoros proibidos, sonhos, famílias, os nomes das lojas desaparecidas. Fala do meu pai como uma rapariga apaixonada; espanta-se quando recordo os arremedos de mau-feitio dele, e tem razão: isso é tão pouco importante que nunca existiu.
Existem ainda os barquinhos de chocolate das Estrelinhas, a pastelaria Estrelas de Tomar onde a minha avó paterna nos levava a lanchar.
Não existem os barcos onde o meu avô materno recitava a lírica de Camões enquanto remava: foram substituídos pelas modernas gaivotas, explicam-me que “por razões de segurança”. A ideia de segurança era outra, na minha infância.
Já não existe o Vasco Jacob que ensinou a minha mãe a nadar, às 8 da manhã, nas águas frias do Nabão.
Os rapazes aprendiam a nadar ao sol da tarde, as meninas ao amanhecer, para não serem vistas.
Já não se pode nadar no rio, dentro da cidade. Chegou entretanto o progresso, com a sua amiga poluição. Mas existe a piscina municipal Vasco Jacob com a prancha de cinco metros onde pela primeira vez tive de enfrentar a palavra coragem - e só a conquistei porque a vergonha e o medo de descer as escadas foram mais fortes do que a vertigem de me atirar de chapão para a água distante.
Existe, renovado, o cine-teatro Paraíso (esta é uma terra de paraísos sucessivos) em cujo ecrã gigante descobri a Música no Coração e tantos outros filmes.
Existe o Convento de Cristo em cuja Charola, agora restaurada, os meus pais casaram. E existe a Céu - a prodigiosa cozinheira do restaurante Chico Elias, que começou por ser uma tasca do dito Elias, seu marido desde há mais de cinquenta anos.
A Céu educou-me o paladar na honestidade absoluta: nada de temperos esquisitos para disfarçar o que não é genuíno, e nenhum limite à imaginação criadora exercida sobre a verdade dos sabores.
O seu pato com migas, o seu coelho na abóbora, o seu cabrito ou o seu bacalhau com carne são outras tantas experiências éticas de eternidade. Para não falar dos doces. Regresso à sua mesa como se nunca de lá tivesse saído: a lareira acesa, o carinho, o colo.
Tomar é o meu colo. Existe há 856 anos, e continuará a existir quando eu não for mais do que um sopro de vento agitando os amores-perfeitos que se encontram pelos recantos dos seus jardins. E saber isso é saber tudo.
Adoro a escrita de Inês Pedrosa! Este texto conseguiu-me fazer sentir o que a própria autora sentiu!E, por sorte já a conheci pessoalmente, há uns anos, numa Comunidade de Leitores na Ericeira.Filomena Gil
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