segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Hoje é dia de homenagear Santa Iria

Santa Iria, padroeira de Tomar, tem hoje, 20 de outubro, o seu dia de homenagem. Mantendo-se a tradição, após a missa na Igreja de S. João Baptista (10h00), inicia-se a procissão até ao rio Nabão. Centenas de crianças das escolas e jardins de infância participam nesta procissão que passa pela rua Infantaria 15, av. Cândido Madureira, rotunda Alves Redol, Levada (rua Everard) e ponte velha. Elementos dos bombeiros ou de um rancho folclórico levam a imagem da Santa num andor. Da ponte, a poucos metros do Convento de Santa Iria, e ao som de cânticos alusivos, as crianças lançam pétalas de flores ao rio Nabão lembrando assim o martírio de Santa Iria.
Para ficarmos a saber a origem desta lenda repescamos um texto de Ernesto Jana publicado há 10 anos no jornal O Templário.

Santa Iria – Viver a lenda
Ernesto Jana
A data que se comemora, 20 de Outubro, é aquela que a tradição fixou como sendo a do martírio de Santa Iria. A data tem-se mantido graças a uma tradição que perdurou, mas devemos observar que a mesma tem sido mantida pelo povo e pelo poder e entenda-se aqui o poder como um conjunto de pessoas que através dos tempos tomam decisões para o bem público.


A história desta mulher, verdadeira ou romanceada, permite fazer a transição entre dois mundos e duas épocas: de um lado, o mundo romano, civilizado e culto enquanto que do outro (visigótico) existe a barbárie e o obscuro. A um nível regional, ela assegura a ligação entre estas duas maneiras de ver o mundo. Se quisermos passar a lenda de Santa Iria para a realidade actual, ela pode ser observada como um perfeito elo de ligação entre duas realidades distintas mas que se podem complementar. A mártir Santa Cita é o resultado da ligação entre duas realidades. De um lado temos a queda consumada do Império Romano embora muito do seu “modus vivendi” ainda perdure. Por outro lado o domínio visigótico é uma realidade embora assente nas ruínas do Império Romano e aproveitou muito da realidade romana. A jovem Iria é disso exemplo como o são outras lendas caso da de Santa Cita. Na lenda em apreço existe um conjunto de pormenores interessantes que merecem algumas considerações. No que toca ao lado paterno o pai dá pelo nome de Hermígio e as irmãs ostentam nomes latinos. Isso permite apontar para os avós paternos de Iria como sendo germânico o avô e latina a avó. O pai contraiu matrimónio e as irmãs seguiram uma vida religiosa. Já pelo lado materno os nomes apontados são latinos o que parece apontar para uma família de origem latina. Célio segue uma vida religiosa o que pode levar a pensar numa família nobre mas de baixa estirpe. A política de matrimónios aqui patente leva a donzela latina e futura mãe de Iria a casar com Hermígio e, por consequência, a uma ascensão social. Se há ilações que podemos tirar desta história o encontro de culturas, de mentalidades e de formas de estar são certamente um bom motivo de reflexão. Parece ter existido um encontro de culturas que deve ser salientado tendo em conta o que se passa pelo mundo.
É também importante a localização da história pois esta situa a casa do conde Castinaldo nos terrenos da velha “Selium”. Hoje neste terrenos encontramos a Igreja de Santa Maria do Olival, sítio do mosteiro que igualmente é mencionado na história. Era por esta zona que situaria os paços do conde Castinaldo e a residência da família de Iria. Na época como toda a zona que vai hoje do cemitério e do quartel de bombeiros até ao pego de Santa Iria são bons terrenos, bem localizados. Já no século VII uma urbe fazia-se e crescia em função da sua localização. Nos nossos tempos mantém-se a mesma ideia e Tomar desenvolveu-se abraçando o rio. Habitações e indústrias tomaram conta das margens. Os tempos passam e as ideias e conceitos do século XX ficaram para trás para emparceirarem com os tempos do já longínquo ano de 653, tempo de Iria. A ideia da edilidade em associar a um programa denominado POLIS resulta dos anseios da população em querer viver de novo de mãos dadas com o rio Nabão. Resta à autarquia compreender bem esses anseios e dar-lhe a real aplicação.
Outros pormenores da lenda saltam num ápice doze séculos para vir para as páginas de hoje. Estamos a referir-nos à vontade manifestada por Iria em aprender a ler as Escrituras. Para que tal acontecesse era necessário saber ler e escrever. Os pais pediram o conselho do abade Célio – tio de Iria – que achou a ideia muito boa e indicou-lhe Remígio como perceptor. A donzela era noviça num convento onde existiam monges e freiras. Este último facto causa surpresa nos nossos dias mas não devemos retirar estes factos do contexto de uma época em que as grandes famílias patrocinavam (nos nossos dias trata-se de uma acção mecenática) conventos familiares. Este género de conventos irão mais tarde ser condenados pela Igreja.
Voltemos à vontade de aprender a ler. Coisa estranha numa mulher que se interessa em ler em pleno século VII. Mas o desejo de saber está latente no Homem e a vontade manifesta de um ser humano quer saber mais não nos devia espantar mas a verdade é que “umas vezes m’assombro outras me espanto” como dizia Sá de Miranda. O século XX tinha por alturas da Revolução de Abril uma alta taxa de analfabetismo e de entre os analfabetos, as mulheres estavam em maioria. Coisa estranha, um país permitir durante décadas que dezenas de milhares de indivíduos estivessem com os olhos fechados ao mundo devido ao facto de não saberem ler e escrever. Em 30 anos o nosso País mudou. Mudou mesmo muito. A taxa de analfabetismo diminuiu drasticamente mas em compensação há muita gente que lê mas não sabe o que está a ler. Chama-se iliteracia e está em expansão. Mas a esperança continua a residir nos novos e naqueles que têm mais experiência de vida. É um incentivo ver uma mulher (ainda aqui uma mulher) centenária a dizer que gostaria de saber ler e ter um pedagogo como Carlos Trincão que se prontifique a ajudá-la a caminhar na direcção do Saber.
É interessante como o passado toca o presente quando menos esperamos. É interessante como o passado chega sempre que observamos o rio. É interessante como o passado é invocado sempre a 20 de Outubro por todos nós mas nem sempre o aproveitemos verdadeiramente como fonte de inspiração e de sabedoria.
Ernesto Jana
Desenho de José Inácio da Costa Rosa
Texto publicado no jornal O Templário a 21 de outubro de 2004

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