domingo, 30 de setembro de 2018

Escritor António Lobo Antunes conta como foi feliz em Tomar

O texto não é novo mas vale sempre a pena relê-lo e registá-lo. Numa das suas habituais crónicas publicadas na revista Visão, o escritor António Lobo Antunes relata os tempos "únicos" em que esteve em Tomar, nos anos 70, como médico no hospital militar.

A crónica foi publicada na sequência de uma visita que o escritor fez em 2010 a Tomar, onde pouco reconheceu na cidade.

TOMAR

Para a Zezinha

E, pela primeira vez depois da tropa, regressei a Tomar. Fui, feliz ali: era médico no Hospital Militar, à espera de ser mandado para África, mas a beleza e as cores da cidade, flutuando de ambos os lados do rio, as flores o cheiro da mata, a serra onde um táxi me levava a tratar pessoas, o sol, os barquitos que remava no Nabão, a messe de oficiais, cheia de coronéis velhinhos, com mais frascos de remédio do que talheres, à volta dos pratos do almoço, passeios na Corredoura, os meus dois colegas, Jorge Rocha Mendes e Gildásio Cabrita, a quem fiquei ligado por uma amizade que se mantém intacta em mim
(se lerem isto saibam que continuo gostar de vocês)
tornaram a época que aí passei única na minha vida. Escrevia com enorme dificuldade, um livro que me custou dez anos e nunca foi publicado
(deve ser uma bodega)
e enquanto ia alinhando frases um pombo agonizava no beiral diante de uma janela.
(não esqueço o pombo não esqueço nada)
a cada hora mais arrepiado, mais fraco, com uma coroa de gatos em torno. E o tom dos salgueiros, meu Deus, o hospital
do convento de Cristo, no topo de um morro, bailaricos, a convicção que nada tinha peso e voávamos à tona das horas, o riso do Gildásio, os olhos do Jorge, capazes de caminharem, cara fora, nas patinhas das pestanas, namoricos clandestinos, o grande e doce silêncio das noites, coisas que conservo, intactas, no espírito, como uma luz secreta.
Voltei e pouco reconheço. Parece idiota mas achava-me seguro de encontrar, na primeira esquina, o Jorge e o Gildásio: nenhum deles apareceu. A cidade alterara-se, o frio incomodava-me, nem um niquinho de sol, caminhei a transbordar de tristeza, por ruas escuras e desertas A messe
de oficiais, na qual fiz a minha filha, demolida, os coronéis velhinhos sumiram-se, Tomar Pálido e diferente e eu passeando entre cinzas, de paisagens, de sentimentos, de emoções. Como é possível tanto ter mudado Transformei -
-me num cachorro a procurar, sem sucesso, um osso que perdeu. Irremediavelmente, E não me conformo: que é da alegria, da luz, das pessoas? Que é e mim? Será que o tempo debota a gente? O meu quarto ficava no corredor para a sala de jantar, a cabeceira da cama batia na parede a
Zé, envergonhada
- Por favor não faças barulho, por favor não faças barulho e,
infelizmente acabou-se o barulho, nenhuma cabeceira de cama bate na parede, não há cama, aliás, nem parede, nem sala de jantar: há um vazio na praça. Conheci o resultado da cabeceira com quatro ou cinco meses, ao vir de férias de Angola, a sorrir num berço, e desatei a chorar, do mesmo modo que ao informarem-me pelo rádio, pelo rádio do nascimento dela, desatei a chorar. De raiva por não estar lá a fim de a pegar ao colo. Isso é uma das várias cabronices que não perdoo à ditadura. Fui até junto do arame farpado
para que não me vissem as lágrimas. Viu-as o alferes Eleutério, calado de mão no meu ombro.
(Obrigado, Eleutério)
e as feições perdidas na chana. Recordo-me de pensar- Ela nasceu. já não morro
e disso me consolar um pouco da horrível miséria da minha vida no Leste. Recordo -me de pensar, também, em Tomar: os inúmeros peixes no Nabão, a pousada de Santa Iria, a ponte que me encantava. Que é feito disso hoje? Continuam em tomar e não continuam. Chuva, frio. Se me auscultasse hoje ouvia os soluços do coração, lentos e fundos. Tomar, a guerra, o café das Estrelinhas, revisitado, sem cor. Palavra de honra, Gildásio, palavra de honra Jorge: não entro mais em Tomar sem vocês, convosco seria de novo o que foi para nós, repara na sinagoga, repara no Mouchão, repara naquelas pernas, E, em lugar de chuva, frio, ninguém, a gente a descer o Convento, o Gidásio a
puxar o lacinho ao empregado que nos servia na messe, os coronéis na varanda, entupidos de pastilhas e xaropes
- Quem me dera a vossa idade rapazes
e nós surpreendidos porque não possuíamos idade nenhuma.
Tomar, tomar, porque nos abandonaste? Hoje sou um senhor importante, um escritor importante, e não é nada disso que eu queria. Queria rabiscar as patetices ingénuas que rabiscava nessa altura, espiando o pombo, em balsamado no perfume das folhas, das corolas.
Queria assistir aos gestos amaneirados do enfermeiro da Misericórdia, em cada dedo uma pálpebra a piscar, queria tratar gripes e cólicas renais nos casebres da serra, queria troncos altos, à chegada, nas bermas do caminho. Queria o silêncio das águas do rio, milhares de peixes deslizando como punhais. Queria o comboio na estação e a cabeceira da cama na parede, a exlodir o entusiasmo.
Desta feita dormi no Hotel dos Templários, Sozinho. Uma claridade lívida ao acordar, o pequeno almoço comido no quarto, sentado a um móvel com espelho. No lado oposto do vidro um homem nu e sério que, embora copiasse os gestos, não era eu. Não se imagina a melancolia de um quarto de hotel quando não falam connosco, quando só metade do lençol tem a marca de um corpo, quando ninguém pede
- Por favor não faças barulho, por favor não faças barulho e nem a nossa voz tem som. Dêem-me, ao menos, o sorriso da minha filha bebé, permitam que lhe pegue ao colo, lhe ponha os pezinhos no interior da minha boca. Com os pezinhos na minha boca torno me terno. Não por ser um senhor importante, um escritor: porque a minha filha tem quatro ou cinco meses. Em consequência de que raio de mistério é que uma cabeceira na parede vira o acontecimento mais importante do mundo? Tomar à chuva. Desilusão. Tristeza. Não faz mal. Basta um sorriso para ressuscitar o universo. Zézinha.
António Lobo Antunes
Quinto Livro de Crónicas
Revista “Visão”, nº 926, 2 a 8 de dezembro de 2010

3 comentários:

  1. Pois! Repetição de uma crónica fundamental. Que seria dos tomarenses se o dito texto não lhes lembrasse que já não há messe, nem coronéis cheios de remédios LM, nem hospital militar, nem estalagem de Santa Iria, nem barquitos no Mouchão, pela pena de Lobo Antunes?
    Convirá acrescentar que também já não há coragem, nem ideias, nem vergonha na cara, nem sequer gente para limpar ruas e jardins? Se calhar não.
    Os tomarenses continuam satisfeitos, como os animais nas pastagens, ou após as refeições, para os que estão em estabulação. Que Deus os proteja a todos, se puder.
    Mas a situação não pode durar muito mais tempo. Faltam recursos. A cadela não pode com tanto cachorro.

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  2. Crónica dos tempos em que Tomar tinha um estatuto de centralidade. Hoje uma cidade periférica.

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  3. Perimérdia e não periférica!

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