segunda-feira, 20 de julho de 2015

As marcas no corpo e na alma de quem carrega um tabuleiro

Foto Arlindo Homem - Agência ECCLESIA
Texto de Sandra Costa
"Da Festa dos Tabuleiros de Tomar, e do sentimento tão forte de quem a vive, tenho de partilhar convosco as razões e as emoções, porque nos extravasam e não se contêm.
Marca-nos profundamente (e para sempre) o esforço de carregar na cabeça perto de 20 quilos por cerca de quatro horas, é inevitável, como facilmente se imagina. A cervical queixa-se, os braços queixam-se, o corpo todo se queixa. Mas queixa-se por pouco tempo. Saber que me acompanha o homem que me ensinou a andar de bicicleta sem nunca sofrer um arranhão, olhar nos olhos das outras mulheres que valentemente nos acompanham no cortejo e com cumplicidade nos sorriem, sentirmo-nos parte desta tão grande força que é capaz de mover um concelho inteiro expressando-se assim, tão excepcionalmente, (e pelo caminho imaginamos o potencial desta força noutras possibilidades e projectos), descansa-nos e empurra-nos. 
A Festa dos Tabuleiros marca-nos o corpo, mas a marca mais profunda fica noutro lugar, deixada pelos milhares de rostos com que nos vamos cruzando ao longo dos cinco quilómetros. Nesses cinco quilómetros pensamos que talvez ali esteja representado o Povo deste País e é absolutamente comovente vê-los também eles marcados, felizes por nos verem passar com o extraordinário colorido dos tabuleiros, mas marcados. Vê-se a marca do esforço estampada na expressão de muitos homens e de muitas mulheres, imagino primeiro pelo que também eles carregam, depois porque fizeram nalguns casos centenas de quilómetros até Tomar. Não os conhecemos mas garanto-vos que não os esquecemos.
Vivem-se também algumas surpresas, como em muitas experiências novas. Para mim (e parece que para muitas outras mulheres e para os homens que as acompanham e estimam) o cortejo parcial foi muito difícil. Deve ser por isso que me invadiu um tal nervosismo às 16H00 de domingo, na Mata dos Sete Montes, que cheguei mesmo a pensar que talvez não fosse capaz de o fazer. Eu tinha treinado e até ao dia anterior estava confiante. Nervosismo, de as mãos nos chegarem a tremer. Alivia-nos um pouco os votos de boa sorte dos outros elementos do grupo e do presidente da nossa Junta de Freguesia.
A saída da Mata dos Sete Montes é indescritível. Milhares de pessoas amontoam-se de tal maneira, que não se vê um único espaço vazio e o cortejo já formado na frente, com uma fila interminável de tabuleiros, num alinhamento que só vê quem lá está dentro e com um tabuleiro à cabeça. O cortejo segue e nós também e vamo-nos descontraindo.
No percurso arde-nos a cabeça mas ouvimos tantos gritos de força de quem nos conhece e de quem nunca nos viu, que a dada altura é só uma impressão. Penso no João Victal e imagino que possa estar muito mais cansado, e penso também nos homens e mulheres que decoraram as ruas, e nos homens da Câmara Municipal que montaram toda a decoração na cidade, penso ainda nas pessoas que fizeram e montaram os tabuleiros e nos homens e nas mulheres dos restaurantes, dos cafés e dos hotéis. Penso no esforço de quem assiste, que ali está há horas, e nos fotógrafos e nos jornalistas (que eu sei bem como é difícil!).
Pensa-se em nós próprios, que o percurso é tão longo que há tempo para isso tudo. Pensa-se e sente-se. E conversa-se com o par da frente (que tinha uma claque que os seguia e cujas cabeças vi aos saltos várias vezes, no meio da multidão um pouco mais estática). E ouço o meu pai a perguntar se quero que ele leve o tabuleiro um bocadinho. E o par de trás que vai descrevendo com avanço a aderência ou não da estrada (“Agora é calçada, agora é uma passadeira elevada”). E sente-se a falta da banda e às vezes um pouco de sede (que vamos todos matando, bebendo pela mesma caneca). E fala-se com as pessoas que assistem, que vão perguntando quanto pesa o tabuleiro, quantos tabuleiros tem o cortejo, se é a primeira vez que levamos, e ouvem-se gritos de “Força!! Valentes!!” E salta para o meio do cortejo a Fernanda, que me abraça ali mesmo!
Quem não é de Tomar talvez não compreenda. Esta Festa faz parte da nossa história, desde que nos conhecemos como gente. É impossível não gostar de Tomar, não é possível não nos orgulharmos de sermos daqui e de vivermos aqui. E reconheço a sorte de se viver rodeada pela beleza e pelo espírito deste lugar, pela carga histórica que concentra tanta da identidade portuguesa. Podia, Tomar, ser mais aberta à mudança e o processo podia ser mais rápido, mas que fiquem cá muitos dos que não abdicam de trazer, e muitas vezes doar, o seu contributo para que se criem as condições de nos mantermos onde somos felizes. Aqui.
Foi preciso participar assim na Festa dos Tabuleiros para perceber que, talvez por força do hábito, me expresso com palavras de pouca intensidade. É que a intensidade da experiência não está aqui descrita. Para quem puder, não a perca. Aloja-se na nossa memória e no nosso coração e por lá permanecerá."

*Sandra Costa é técnica de comunicação atualmente em serviço no Convento de Cristo. Participou na Festa dos Tabuleiros em representação da União de Freguesias de Além da Ribeira / Pedreira. Agradecemos a partilha do seu texto.

2 comentários:

  1. Belissimo e comovente texto. Parabens, Sandra Costa (mais ao Homem que a ensinou a andar de bicicleta, sem um arranhão)

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  2. Parabéns Sandra e obrigada por estas lindas palavras. Beijinho.

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